Jornalista Sibyla Loureiro, editora da Folha de Coqueiros, acompanhada da professora e ciclista Ana Destri (foto), entrevistou o aposentado José da Cunha, de 96 anos, que se aventurou ao lado de dois amigos para realizar um antigo sonho: pedalar de Florianópolis até Buenos Aires em 1951.


Ele já foi balconista, vendedor de tecido, de papel carbono, de seguro de vida, foi corretor de imóveis, representante de laboratório, de livros, calculista topográfico, instalador de tapetes, colecionador de selos e, de quebra, recebeu o título de “viajante mais honesto” quando se dedicou ao ofício de vendedor e representante de laboratórios.
Mas sua maior façanha, ao lado de dois amigos, completa no próximo mês de janeiro 75 anos. Trata-se da viagem de bicicleta de Florianópolis a Buenos Aires em 1º de janeiro de 1951. O chamado Raid Ciclístico, um feito histórico na Capital que foi acompanhado por um “punhado” de pessoas em frente à Catedral Metropolitana de Florianópolis, de onde partiu (veja abaixo).
Estamos falando do senhor José Ferreira da Cunha, de 96 anos, um cidadão lúcido e cheio de histórias para contar. Também pudera, nada acomodado viveu intensamente tanto na área profissional como pessoal. Sua trajetória acabou virando um livro de memórias, organizado pela neta Marina e lançado em 2024 (foto).


Celli Garcia, José da Cunha e Samuel Santos. Reportagem que marca a saída dos ciclistas da Capital.

Livro organizado pela neta Marina. Na capa, foto do padrasto de Miguel, Capitão Bonifácio Vallejo; do avô Miguel Villareal Vela; e dos ciclistas Celli Garcia, José da Cunha e Samuel Santos.
ROTINA DIÁRIA
Morador da Rua Jaú Guedes, em Coqueiros, há mais de 40 anos, seu Cunha, como é mais conhecido nas redondezas, leva uma vida metódica que começa às 6 horas da manhã e termina por volta das 22h. Prepara o seu café da manhã, toma seus remédios, e sai para dar um passeio com o cachorro Pépi no Parque de Coqueiros. No caminho, gosta de alimentar os pássaros e já plantou, segundo ele, algumas espécies de árvores frutíferas em extinção no Parque de Coqueiros.
Uma vez por mês, frequenta as reuniões da loja maçônica e a cada 15 dias faz uma visita ao barbeiro Toninho. “Seu Cunha foi o meu primeiro cliente, quando abri a barbearia em Coqueiros há 25 anos”, recorda Antônio Carlos Maciel dos Santos, o popular Toninho. Vaidoso, seu José da Cunha corta os cabelos, apara os fios do bigode e faz a barba.


Porém, a rotina fora de casa, hoje, por conta da idade, é acompanhada ou dos netos ou da filha, que moram na mesma casa de dois pisos: seu Cunha mora no andar de cima e a filha, a neta e a bisneta, na parte de baixo.
“Eu cuido delas, e elas cuidam de mim”, costuma dizer. Além dos passeios na rua que só podem ser feitos com acompanhante por motivo de segurança, seu Cunha também substituiu os exercícios físicos que, antes eram praticados na academia, por um personal na residência.
Ele divide ainda o seu tempo com leitura e palavras cruzadas, um hábito que compartilhou com a irmã mais velha, Marina. Da irmã do meio, Mary, partilhou o gosto pelas plantas. “Minha irmã, formada em Odontologia, devido ao seu amor às plantas, foi homenageada com a implantação de um bosque com seu nome nas dependências do Parque da Luz, local que ela ajudou a criar”, recorda.

Um retrato na casa de Coqueiros: Netos Marina e Bruno, José, a filha Yara e a bisneta Olívia. Ao fundo, coleção de medalhas conquistada em campeonatos de remo pelo neto Bruno.
A FAMÍLIA
Neto de Miguel Villareal Vela, um argentino formado em Engenharia Elétrica e Mecânica, responsável, inclusive, a convite do governador do Estado, Gustavo Richard, em 1907, pela instalação da Usina Hidrelétrica do Rio Maruim, em São José, que acabou gerando luz elétrica a Florianópolis e região.
Até então, a iluminação era precária e funcionava à base de óleo de baleia e, após, substituída por gás ou querosene. A distribuição da energia ficou ao encargo da estatal Cia Luz e Força de Florianópolis S.A. que, em 1965, foi incorporada pela Centrais Elétricas de Santa Catarina- Celesc.
O avô casou com Raquel Goodwin, uma inglesa que conheceu quando estava em Londres fazendo um curso de aperfeiçoamento na fábrica de geradores Siemens. Casaram-se e tiveram três filhos: Adelina (nascida na Inglaterra) e Zoila e João Cirilo (nascidos no Brasil).
Do avô, seu Cunha herdou o gosto pela bicicleta, já que Miguel costumava pedalar de Londres até o Porto Southampton e, de lá, embarcava num navio misto até o Porto de Calais, na França. Dali, pedalava até Paris, onde cursava fotografia nos fins de semana.
De volta ao Brasil, depois de morar em São José por conta da construção da Hidrelétrica de Maruim, a família Vela residiu no centro de Florianópolis, numa chácara na Rua Tenente Silveira. Após, a família se transferiu para a Rua Esteves Júnior e, no terreno onde moravam, foi erguido o Lyra Tênis Clube.
A mãe, Adelina, estudava piano, dava aulas de inglês e gostava de moda. Uma mulher à frente do seu tempo. Casou-se com Aarão Ferreira Cunha, que conheceu na famosa loja de armarinho Carlos Heber. E foram morar na Rua Felipe Schimidt, nos fundos do casarão que o pai, Miguel, residia na Rua Tenente Silveira.
E foi nessa casa que nasceram seis filhos do casal, entre eles seu José da Cunha. Depois, foram morar na Rua Bocaiúva: os filhos homens estudaram no Grupo Escolar Arquidiocesano de São José, localizado na Rua Padre Roma, e depois no Colégio Catarinense. As filhas, por sua vez, estudaram no Colégio Coração de Jesus.


Seu José mostra a casa em que nasceu na Rua Felipe Schmidt, construída por um engenheiro suíço.
Foi também por volta de 1913 que – nos altos da Felipe Schmidt – Carl Hoepcke criou a Fábrica de Rendas e Bordados Hoepcke, e Aarão foi trabalhar na firma, local onde também seu Cunha – junto ao pai – no setor de fazendas – teve o seu primeiro emprego com carteira assinada – em 1947. Ainda trabalhou na seção de ferragens ao lado do seu tio Orlando.
Viúvo há 48 anos de Maria Lygia Mayworme, seu Cunha teve uma única filha – Yara, que se formou em Biblioteconomia. Hoje tem dois netos, Bruno, comissário de voo e atleta de remo, e Marina, que é advogada, além de três bisnetos.
ALGUNS MOMENTOS
Nascido em 19 de março de 1929, dia de São José, daí a origem do nome, seu José da Cunha presenciou aos cinco anos de idade um grande acontecimento na cidade: a passagem do dirigível Graf Zeppelin, no ano de 1934. “Escutamos um grande barulho, e minha irmã avisou que era o Zeppelin e que estava de passagem – sobrevoando Florianópolis – em direção a Buenos Aires”, lembra.
Na adolescência, estudou no Instituto Dias Velho, hoje Instituto de Educação, e sua professora de Português foi Antonieta de Barros, a primeira mulher eleita deputada estadual em Santa Catarina. “Tive bons momentos de aprendizado”, celebra, ao lembrar de um episódio que ficou marcado:
“Numa tarde, na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, ao levar um documento na Alesc, me deparei com uma cena marcante ao ver a dona Antonieta, no papel de deputada, dando um severo pito num dos deputados, “se vossa excelência não sabe nem escrever, certamente não saberá ler o discurso que lhe preparei”, disse. Ao me ver, perguntou: Você escutou a nossa conversa? Pois então, estude bastante para não repetir o que o deputado fez”.
Seu Cunha lembra ainda de outro grande momento da sua vida, quando apresentado a um violino Stradivarius, através de um casal que conheceu conversando sobre a cidade e sobre música – em espanhol – no centro de Florianópolis. “Achei que precisavam de ajuda e perguntei se não queriam ir em minha casa escutar a minha mãe tocar piano. Eles aceitaram e o senhor entrou no hotel que estava hospedado para buscar o seu instrumento”, comenta seu Cunha.
“Quando ele abriu a caixa que carregava em nossa casa, cheguei a ficar trêmulo por estar perto de um instrumento tão raro”, lembra, ao destacar que o músico era o regente da orquestra de Buenos aires, Alexandre Solsem. E assim, eles fizeram um recital gratuito para várias pessoas que se aglomeravam em frente à residência da família.
RAID CICLÍSTICO
Por conta da paixão pelos esportes, seu Cunha, que já havia praticado remo por incentivo da família, comprou a prestação uma bicicleta de fabricação inglesa, uma Phillip com torpedo para realizar um dos seus grandes sonhos: pedalar até a Argentina e conhecer pessoalmente os seus parentes.
Foi então que pensou em fazer um raid ciclístico até o país vizinho. Se preparou fisicamente durante cinco anos nos finais de semana, que eram seus dias de folga. Aos sábados, costumava carregar um saco de 30 quilos de areia na bicicleta e fazia o trajeto da sua casa, no centro de Florianópolis, até o Sertão do Maruim, onde ficava a usina hidrelétrica, em São José.
Para conseguir apoio, procurou o vereador Osmar Cunha que também era secretário da Fundação Atlética Catarinense (FAC). “Ficou entusiasmado com a ideia e garantiu dar todo o apoio. Então, criamos o “livro de ouro”, um caderno para coletar a assinatura das pessoas que doassem alguma quantia para futura prestação de contas”, relata seu Cunha.
Criaram também um Diário de Viagem para recolher carimbos e comprovar os lugares que estiveram. E Osmar Cunha solicitou ao prefeito – na época Adalberto Tolentino Carvalho – para que o mesmo redigisse ofícios de apoio para levar na viagem e conseguir, através das prefeituras, ajuda com refeições e hotéis durante o percurso.
E, assim, na companhia de mais dois companheiros para empreitada, um deles o Samuel Santos, que era conhecido ciclista da cidade, e o outro Celli Garcia, saíram de Florianópolis à meia-noite do dia 1º de janeiros de 1951. A partida aconteceu em frente à Catedral Metropolitana na presença de um grande público e autoridades.
A cada cidade vencida, seu Cunha comunicava com telegrama endereçado ao vereador Osmar Cunha que, sem seguida, repassava para os radialistas da Rádio Guarujá e para o Repórter Esso, a única forma de dar notícias ao público que acompanhava a aventura.
O raid ciclístico durou em torno de 97 dias – contando o tempo de parada nas cidades (cerca de 25). E após ficarem quase um mês na Argentina, partiram para o Brasil no dia 26 de fevereiro chegando a Florianópolis dia 7 de março.
Na Capital, foram recepcionados por uma multidão em torno da Praça XV de Novembro. Foram homenageados na Câmara de Vereadores, com entregas de medalha de ouro e a concessão de Heróis pela participação no Raid Florianópolis- Buenos Aires.
“Homenagem que jamais esquecerei, tanto que guardo na minha carteira o exemplar da medalha para comprovar a aventura e incentivar atletas e pessoas comuns a nunca desistirem dos seus sonhos”, disse ao completar:
“Foram muitos quilômetros percorridos e muitas histórias de dificuldades e desafios que marcaram a minha memória e que até hoje me trazem orgulho e me fazem voltar no tempo com tantas lembranças”, coloca seu José da Cunha.

Medalha de ouro entregue aos ciclistas pela Câmara de Vereadores de Florianópolis e titulo de Heróis.
Texto: Sibyla Loureiro/editora Folha de Coqueiros
Fotos: Ana Destri e Divulgação/Álbum de Família